sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A “demonização” que desinforma

Caros.
Faz alguns anos que escrevi esse texto para o site de artes do meu amigo Gustavo Serafim. Mas achei pertinente colocá-lo aqui no blog.

Deleitem-se!

Um amigo meu, vendedor de uma loja de CDs de rock e, consequentemente, vocalista de uma banda de heavy metal, um dia compartilhou algumas das “pérolas” que ouve de clientes. Um sujeito entrou na loja, pegou um CD do Ozzy Osbourne e disse: “Esse moço fez pacto com o diabo e bebeu sangue de um caixão para ser roqueiro!”.
Tudo bem, é claro que o Ozzy foi o grande responsável por algumas das maiores atrocidades (e boa parte delas foram mais um tremendo besteirol somado a uma vida desregrada, do que necessariamente algo satânico), mas a frase do sujeito mostra o tamanho da desinformação que se tem sobre algumas coisas. Claro, com uma pitada de “lenda urbana”.
Pegando esse gancho, como a preocupação nesse texto é sobre o cristão artista, vejo que a desinformação no ambiente da igreja, não é diferente do que o exemplo acima.
Encarar o rock como música do diabo, já virou uma conversinha tonta, que somente os mais desinformados caem. Mas de qualquer maneira, sempre vale uma explicação a mais.

Vamos lá. O rock tem origem no blues, que tem origem nas igrejas negras em meados de 1920, nos EUA. Os negros que colhiam algodão, passavam o dia cantando lamentações/tristezas (origem da palavra blues) enquanto tinham o penoso trabalho de colher algodão. Entre as músicas que cantavam (e compunham na hora), muitas eram louvores a Deus pedindo uma vida melhor, ou lembrando que no céu, tal sofrimento não mais existiria.
O rock iniciou como o “blues acelerado”, também dentro dessas igrejas negras. O mesmo ambiente foi o berço do jazz e do soul.
Quando o rock começou a se popularizar, aquele “ritmo dançante” recebeu o nome pelo qual o conhecemos de um DJ americano, em 1953, no sentindo de que essa música fazia balançar e “mexer os quadris”.
A polêmica sobre o diabo ser o pai do rock, começa também nos anos 50, quando a conservadora (e racista) sociedade americana da época, abolia tal música vinda dos negros, e dizia que tirava os bons costumes dos seus filhos. Até surgir um rapaz branco de olhos azuis, chamado Elvis Presley, para enfiar esse racismo goela abaixo. Mas isso é outra história.
No início dos anos 70, o rock tornou-se mais pesado, e uma banda inglesa formada por quatro jovens, aproveitou a revolta típica dos hormônios da juventude e juntou com uma boa estratégia de marketing, escrevendo letras calcadas em bruxarias e pactos com o “Tinhoso”, dando origem ao Black Sabbath. Ali, nasceu a cara mais maldosa do rock.
Portanto, Raul Seixas e Paulo Coelho não são os responsáveis pela frase “o diabo é o pai do rock”. eles pegaram isso emprestado do que acontecia no exterior.
Claro que muitas bandas realmente se jogaram para o lado satânico da coisa, mas aqui, estou falando sobre a origem do estilo e não sobre o gênero “black metal”.

Também já ouvi dizer que os instrumentos musicais tem origem diabólica porque foram criados por Jubal, que era descendente de Caim. Contestável.
Vamos analisar. Jubal era descendente de Caim e a Bíblia comprova isso. Mas afirmar que por ele ter essa descendência ele teve influência diabólica para criar os instrumentos musicais, não tem a menor base bíblica. Isso nada mais é do que uma interpretação pessoal carregada de “achismos”.
Mas vamos pensar no seguinte. Será que a criação das armas tem inspiração diabólica? Independentes de sabermos, vamos dizer que tem.
Então, o que diremos da funda que Davi usou para matar o gigante? Ela era diabólica?
Voltando aos instrumentos musicais, e a harpa que Davi tocava e acalmava o furor do rei Saul? Tinha um espírito maligno nela?

Vamos esclarecer algo aqui: A igreja está se tornando tão menos bíblica e tão religiosa, que ela demoniza tudo aquilo que ela não sabe explicar.
Tem um ator de cinema, ultra conhecido que vive bêbado agredindo fotógrafos e tratando entrevistadores com o maior desrespeito do mundo. Só que esse mesmo ator dirigiu e produziu um filme adorado por pelo menos 90% dos cristãos: A Paixão de Cristo, o ator/diretor é Mel Gibson.
A igreja é ignorante no que diz respeito a coisas que ela não tem a capacidade de explicar. E quando surge essa ignorância, ela apela e demoniza as coisas.
No Brasil, a história de que rock é do diabo ganhou força em 1983, quando o Kiss veio tocar aqui pela primeira vez. A mídia da época saiu propagando que os caras matavam pintinhos no palco (o que sempre foi uma mentira) e faziam sacrifícios ali (tudo por causa da pirotecnia usada nos shows).
No show do Kiss no Rio de Janeiro, um grupo de crentes resolveu impedir a entrada do público alegando que ali teria um ritual satânico. Tudo porque a mídia, escandalosamente, divulgou um monte de besteiras sobre o grupo.
Até entendo o papel desse grupo de crentes de quererem “proteger” as pessoas que iriam assistir o show. Mas o tumulto todo foi causado pela propagação errada de uma notícia e pela falta de informação.
Não estou servindo como advogado da banda, não é esse o objetivo. Simplesmente quero escancarar a demonização que existe sobre coisas que nem tentam ser explicadas ou aprendidas.
Artistas cristãos deveriam ser os menos preconceituosos com coisas que se referem simplesmente a arte. E pastores que se interessem por cuidar da vida desses artistas, deveriam ser além dos mais “chegados” a Deus, os mais informados e antenados sobre o que acontece nesse mundo.

O que tem acontecido é que uma legião de artistas surgem dentro das igrejas simplesmente para passarem a sua vida fazendo arte apenas para a igreja!
Ou seja, o “IDE” de Jesus foi para o espaço, e a criatividade dada por Deus só pode funcionar de maneira eclesiástica.
Mas esse não é o princípio da igreja, que por sinal, significa “eclésia” e vem do grego “tirados para fora”.
A igreja precisa ser sal, e o cristão que é artista precisa salgar e, como luz, iluminar . Mas o que acontece é o contrário, pois somente uma minoria dos cristãos artistas que resolvem fazer algum trabalho no meio secular, é que não se afasta da fé.
Isso expõe duas coisas: a falta de base e convicção em sua fé, e a falta de um pastoreio que saiba acompanhar um ARTISTA (não um membro de igreja).
Entendo o fato de que muitos pastores temem que seus membros abandonem seus princípios e destruam suas próprias vidas. Mas demonizar as coisas não é o caminho para proteger. O certo é ensinar conforme a Bíblia ensina, que é sem religiosidade.

Recentemente, conversei com meu amigo Reginaldo (Programa Multiforma) e ele fez um comentário no mínimo interessante. Ele disse que sempre que entrevista um artista cristão (obs: não um cristão artista, são coisas diferentes) e pede para que no final da matéria a pessoa deixe uma mensagem evangelística, o entrevistado não sabe falar de maneira evangelística, só sabe falar com todos aqueles cacoetes manjados de crente. Terrível isso.
Isso também demonstra o inchaço da “bolha gospel evangélica”.
A igreja tem se fechado tanto em seu universozinho, fazendo seus eventos que propagam somente seus interesses (que raramente são almas), que boa parte dos cristãos não conseguem mais dialogar inteligentemente com pessoas que não compartilham da mesma fé.
Isso é preocupante, porque se um cristão (principalmente um artista) não consegue dialogar com as pessoas que não dividem da mesma fé, de que maneira ele vai influenciar?
Tenho um grande amigo, chamado Carlos Sugawara, que além de ser um cristão convicto de sua fé, é “apenas” um dos artistas do cast do famosíssimo Cirque du Soleil.
Recentemente, pude acompanhar um acontecimento besta de uma pessoa completamente religiosa que crucificou o Carlos por ele ser “crente” e trabalhar num circo cheio de “símbolos satânicos” (coisa que honestamente não sei onde estão esses símbolos).
Obviamente que eu entrei em defesa do Carlos. Mas esse ocorrido mostra como a mesma igreja que hoje propaga milhares de eventos de arte ainda não sabe como lidar com a ARTE.

A igreja trabalha dentro do conceito seguinte:
Música, só é boa se for louvor.
Dança, só vale se for uma coreografia bíblica.
Teatro, só pode se interpretar um tema bíblico.
Artes plásticas, só pode se for uma pintura bíblica ou uma “arte profética”.
Circo, só é permitido se o palhaços fizerem “palhaçadas cristãs”.
Poxa! Como assim? Quem foi que ditou essas regras?
A Bíblia que não foi, isso eu garanto.
Devemos entender que o que está em jogo, antes da arte, é o artista. A arte é uma expressão humana criada por Deus (já que fomos feitos a imagem e semelhança dEle), não uma ferramenta evangelística.
Temos que parar com essa história de demonizar coisas que não conhecemos (ou temos preguiça de explicar) e ao mesmo tempo querermos criar uma vertente “gospel” para tudo o que existe.

Quando as pessoas sabem que eu sou cristão e sabem que sou músico de uma banda de celtic rock, imediatamente me perguntam: “Sua banda é gospel?”.
Essa é uma pergunta que faz meu sangue ferver.
Com muita educação, sempre respondo: “Não, não é gospel. Somos cristãos e somos músicos. Fazemos música celta porque é o estilo que gostamos. A única coisa é que nas nossas letras falamos sobre nossa vida, que automaticamente reflete a nossa fé”.
É uma explicação do tamanho de um elefante, mas infelizmente, as pessoas não entendem que é possível ser cristão artista sem ser gospel. É a ditadura do rótulo pela “fé”.

Acredito, e espero, que pastores compromissados com a palavra, mas antenados com a realidade do mundo levantem-se e cuidem dos artistas.
Chegou a hora de dar explicações decentes ao invés de demonizar aquilo que não se conhece.
Também espero que cristãos artistas surjam como cristãos verdadeiros, que saibam que sua arte não é o foco da sua vida, mas sim a salvação conquistada na cruz. Mas que esses mesmos artistas mostrem que sabem fazer arte sem rótulos!
Se o nosso papel é seguir o mandamento de Jesus (IDE), precisamos mudar nossa postura. E se podemos ser profissionais em qualquer área de nossa vida sem nos “auto-rotular”, também podemos fazer arte na essência do que ela é.

 Uma última coisa. Nunca devemos esquecer que o principal é o artista, e não arte que ele produz.