Caros.
Faz alguns anos que escrevi esse texto para o site de artes do meu amigo Gustavo Serafim. Mas achei pertinente colocá-lo aqui no blog.
Deleitem-se!
Um amigo meu, vendedor de uma loja de CDs de rock e,
consequentemente, vocalista de uma banda de heavy metal, um dia
compartilhou algumas das “pérolas” que ouve de clientes. Um sujeito
entrou na loja, pegou um CD do Ozzy Osbourne e disse: “Esse moço fez
pacto com o diabo e bebeu sangue de um caixão para ser roqueiro!”.
Tudo bem, é claro que o Ozzy foi o grande responsável por algumas das
maiores atrocidades (e boa parte delas foram mais um tremendo besteirol
somado a uma vida desregrada, do que necessariamente algo satânico),
mas a frase do sujeito mostra o tamanho da desinformação que se tem
sobre algumas coisas. Claro, com uma pitada de “lenda urbana”.
Pegando esse gancho, como a preocupação nesse texto é sobre o cristão
artista, vejo que a desinformação no ambiente da igreja, não é
diferente do que o exemplo acima.
Encarar o rock como música do diabo, já virou uma conversinha tonta,
que somente os mais desinformados caem. Mas de qualquer maneira, sempre
vale uma explicação a mais.
Vamos lá. O rock tem origem no blues, que tem origem nas igrejas
negras em meados de 1920, nos EUA. Os negros que colhiam algodão,
passavam o dia cantando lamentações/tristezas (origem da palavra blues)
enquanto tinham o penoso trabalho de colher algodão. Entre as músicas
que cantavam (e compunham na hora), muitas eram louvores a Deus pedindo
uma vida melhor, ou lembrando que no céu, tal sofrimento não mais
existiria.
O rock iniciou como o “blues acelerado”, também dentro dessas igrejas negras. O mesmo ambiente foi o berço do jazz e do soul.
Quando o rock começou a se popularizar, aquele “ritmo dançante”
recebeu o nome pelo qual o conhecemos de um DJ americano, em 1953, no
sentindo de que essa música fazia balançar e “mexer os quadris”.
A polêmica sobre o diabo ser o pai do rock, começa também nos anos
50, quando a conservadora (e racista) sociedade americana da época,
abolia tal música vinda dos negros, e dizia que tirava os bons costumes
dos seus filhos. Até surgir um rapaz branco de olhos azuis, chamado
Elvis Presley, para enfiar esse racismo goela abaixo. Mas isso é outra
história.
No início dos anos 70, o rock tornou-se mais pesado, e uma banda inglesa
formada por quatro jovens, aproveitou a revolta típica dos hormônios da
juventude e juntou com uma boa estratégia de marketing, escrevendo
letras calcadas em bruxarias e pactos com o “Tinhoso”, dando origem ao
Black Sabbath. Ali, nasceu a cara mais maldosa do rock.
Portanto, Raul Seixas e Paulo Coelho não são os responsáveis pela frase
“o diabo é o pai do rock”. eles pegaram isso emprestado do que acontecia
no exterior.
Claro que muitas bandas realmente se jogaram para o lado satânico da
coisa, mas aqui, estou falando sobre a origem do estilo e não sobre o
gênero “black metal”.
Também já ouvi dizer que os instrumentos musicais tem origem
diabólica porque foram criados por Jubal, que era descendente de Caim.
Contestável.
Vamos analisar. Jubal era descendente de Caim e a Bíblia comprova
isso. Mas afirmar que por ele ter essa descendência ele teve influência
diabólica para criar os instrumentos musicais, não tem a menor base
bíblica. Isso nada mais é do que uma interpretação pessoal carregada de
“achismos”.
Mas vamos pensar no seguinte. Será que a criação das armas tem
inspiração diabólica? Independentes de sabermos, vamos dizer que tem.
Então, o que diremos da funda que Davi usou para matar o gigante? Ela era diabólica?
Voltando aos instrumentos musicais, e a harpa que Davi tocava e acalmava o furor do rei Saul? Tinha um espírito maligno nela?
Vamos esclarecer algo aqui: A igreja está se tornando tão menos
bíblica e tão religiosa, que ela demoniza tudo aquilo que ela não sabe
explicar.
Tem um ator de cinema, ultra conhecido que vive bêbado agredindo
fotógrafos e tratando entrevistadores com o maior desrespeito do mundo.
Só que esse mesmo ator dirigiu e produziu um filme adorado por pelo
menos 90% dos cristãos: A Paixão de Cristo, o ator/diretor é Mel Gibson.
A igreja é ignorante no que diz respeito a coisas que ela não tem a
capacidade de explicar. E quando surge essa ignorância, ela apela e
demoniza as coisas.
No Brasil, a história de que rock é do diabo ganhou força em 1983,
quando o Kiss veio tocar aqui pela primeira vez. A mídia da época saiu
propagando que os caras matavam pintinhos no palco (o que sempre foi uma
mentira) e faziam sacrifícios ali (tudo por causa da pirotecnia usada
nos shows).
No show do Kiss no Rio de Janeiro, um grupo de crentes resolveu impedir a
entrada do público alegando que ali teria um ritual satânico. Tudo
porque a mídia, escandalosamente, divulgou um monte de besteiras sobre o
grupo.
Até entendo o papel desse grupo de crentes de quererem “proteger” as
pessoas que iriam assistir o show. Mas o tumulto todo foi causado pela
propagação errada de uma notícia e pela falta de informação.
Não estou servindo como advogado da banda, não é esse o objetivo.
Simplesmente quero escancarar a demonização que existe sobre coisas que
nem tentam ser explicadas ou aprendidas.
Artistas cristãos deveriam ser os menos preconceituosos com coisas
que se referem simplesmente a arte. E pastores que se interessem por
cuidar da vida desses artistas, deveriam ser além dos mais “chegados” a
Deus, os mais informados e antenados sobre o que acontece nesse mundo.
O que tem acontecido é que uma legião de artistas surgem dentro das
igrejas simplesmente para passarem a sua vida fazendo arte apenas para a
igreja!
Ou seja, o “IDE” de Jesus foi para o espaço, e a criatividade dada por Deus só pode funcionar de maneira eclesiástica.
Mas esse não é o princípio da igreja, que por sinal, significa “eclésia” e vem do grego “tirados para fora”.
A igreja precisa ser sal, e o cristão que é artista precisa salgar e,
como luz, iluminar . Mas o que acontece é o contrário, pois somente uma
minoria dos cristãos artistas que resolvem fazer algum trabalho no meio
secular, é que não se afasta da fé.
Isso expõe duas coisas: a falta de base e convicção em sua fé, e a falta
de um pastoreio que saiba acompanhar um ARTISTA (não um membro de
igreja).
Entendo o fato de que muitos pastores temem que seus membros abandonem
seus princípios e destruam suas próprias vidas. Mas demonizar as coisas
não é o caminho para proteger. O certo é ensinar conforme a Bíblia
ensina, que é sem religiosidade.
Recentemente, conversei com meu amigo Reginaldo (Programa Multiforma)
e ele fez um comentário no mínimo interessante. Ele disse que sempre
que entrevista um artista cristão (obs: não um cristão artista, são
coisas diferentes) e pede para que no final da matéria a pessoa deixe
uma mensagem evangelística, o entrevistado não sabe falar de maneira
evangelística, só sabe falar com todos aqueles cacoetes manjados de
crente. Terrível isso.
Isso também demonstra o inchaço da “bolha gospel evangélica”.
A igreja tem se fechado tanto em seu universozinho, fazendo seus eventos
que propagam somente seus interesses (que raramente são almas), que boa
parte dos cristãos não conseguem mais dialogar inteligentemente com
pessoas que não compartilham da mesma fé.
Isso é preocupante, porque se um cristão (principalmente um artista)
não consegue dialogar com as pessoas que não dividem da mesma fé, de que
maneira ele vai influenciar?
Tenho um grande amigo, chamado Carlos Sugawara, que além de ser um
cristão convicto de sua fé, é “apenas” um dos artistas do cast do
famosíssimo Cirque du Soleil.
Recentemente, pude acompanhar um acontecimento besta de uma pessoa
completamente religiosa que crucificou o Carlos por ele ser “crente” e
trabalhar num circo cheio de “símbolos satânicos” (coisa que
honestamente não sei onde estão esses símbolos).
Obviamente que eu entrei em defesa do Carlos. Mas esse ocorrido mostra
como a mesma igreja que hoje propaga milhares de eventos de arte ainda
não sabe como lidar com a ARTE.
A igreja trabalha dentro do conceito seguinte:
Música, só é boa se for louvor.
Dança, só vale se for uma coreografia bíblica.
Teatro, só pode se interpretar um tema bíblico.
Artes plásticas, só pode se for uma pintura bíblica ou uma “arte profética”.
Circo, só é permitido se o palhaços fizerem “palhaçadas cristãs”.
Poxa! Como assim? Quem foi que ditou essas regras?
A Bíblia que não foi, isso eu garanto.
Devemos entender que o que está em jogo, antes da arte, é o
artista. A arte é uma expressão humana criada por Deus (já que fomos
feitos a imagem e semelhança dEle), não uma ferramenta evangelística.
Temos que parar com essa história de demonizar coisas que não conhecemos
(ou temos preguiça de explicar) e ao mesmo tempo querermos criar uma
vertente “gospel” para tudo o que existe.
Quando as pessoas sabem que eu sou cristão e sabem que sou músico de
uma banda de celtic rock, imediatamente me perguntam: “Sua banda é
gospel?”.
Essa é uma pergunta que faz meu sangue ferver.
Com muita educação, sempre respondo: “Não, não é gospel. Somos cristãos e
somos músicos. Fazemos música celta porque é o estilo que gostamos. A
única coisa é que nas nossas letras falamos sobre nossa vida, que
automaticamente reflete a nossa fé”.
É uma explicação do tamanho de um elefante, mas infelizmente, as
pessoas não entendem que é possível ser cristão artista sem ser gospel. É
a ditadura do rótulo pela “fé”.
Acredito, e espero, que pastores compromissados com a palavra, mas
antenados com a realidade do mundo levantem-se e cuidem dos artistas.
Chegou a hora de dar explicações decentes ao invés de demonizar aquilo que não se conhece.
Também espero que cristãos artistas surjam como cristãos verdadeiros,
que saibam que sua arte não é o foco da sua vida, mas sim a salvação
conquistada na cruz. Mas que esses mesmos artistas mostrem que sabem
fazer arte sem rótulos!
Se o nosso papel é seguir o mandamento de Jesus (IDE), precisamos
mudar nossa postura. E se podemos ser profissionais em qualquer área de
nossa vida sem nos “auto-rotular”, também podemos fazer arte na essência
do que ela é.
Uma última coisa. Nunca devemos esquecer que o principal é o artista, e não arte que ele produz.